O Estado tem o dever de prestar contas sobre quem morre e quem mata em nome da segurança pública
Índice de Transparência de Violência Policial criado pela Ponte avaliou a qualidade das informações disponibilizadas pelas secretarias de Segurança Pública das 27 unidades federativas do país. Por Jeniffer Mendonça
Separamos exemplos positivos de diferentes unidades federativas brasileiras para ilustrar como as polícias podem ser mais transparentes no Brasil. Por Jeniffer Mendonça
A repórter Jeniffer Mendonça conta como organizou e como foi a saga de buscar as informações de violência policial nas 27 unidades federativas do Brasil e conclui: ainda falta muita transparência. Por Jeniffer Mendonça
Como a Ponte chegou no Índice de Transparência, que critérios foram avaliados e que peso foi dado a cada um deles
Por Marcelo Soares
Reportagem, redação e levantamento de dados: Jeniffer Mendonça
Consultoria: Marcelo Soares
Edição: Amauri Gonzo
Idealização: Fausto Salvadori
Projeto gráfico: Antonio Junião
Fotos: Daniel Arroyo
Este projeto foi realizado com recursos da Rights & Security International (RSI)
Você sabe quantas pessoas a polícia do seu estado mata num mês, num ano? Se tem essa resposta de bate-pronto, é porque conta com o trabalho de formiguinha da imprensa e de organizações como o Fórum Brasileiro de Segurança Pública e seu Anuário, que ainda é a fonte mais confiável sobre o trabalho das polícias em todo o país.
Agora, se você for procurar essa informação nos canais oficiais, a grande probabilidade é que continue sem saber. Apesar dos avanços legais no Brasil, como a Lei de Acesso à Informação (LAI), para garantir transparência dos poderes públicos (afinal, no credo neoliberal, são os impostos pagos por você que fazem o Estado funcionar, e o mínimo que se espera é uma prestação de contas clara a respeito disso), ainda estamos muito, mas muito longe do ideal.
Nós aqui da Ponte sentimos esse problema no cotidiano, parece que estamos navegando no escuro quase sempre. Saber como, quando e como a polícia mata é importante para tentar reduzir essa violência que a cada dia se entranha mais no nosso cotidiano, para criar políticas públicas efetivas que tragam segurança de verdade — e que ela seja pública, ou seja, que valha para todos.
Por isso, em parceria com a Rights & Security International (RSI), passamos os últimos meses fuçando os sites das Secretarias de Segurança Pública de todo o país, fazendo pedidos de LAI e nos deparando com uma caixa-preta mais opaca do que imaginávamos. Com isso, avaliamos como cada unidade federativa presta contas à população sobre como a polícia mata e como a polícia morre. E as conclusões não são muito boas: três estados pontuaram zero, e a maioria absoluta está bem longe do ideal de transparência.
Abaixo você vai encontrar o índice completo e as explicações de como chegamos a esses números. Além disso, dedicamos uma reportagem para explicar a importância da transparência na área de segurança pública, preparamos um guia de boas práticas para orientar quem trabalha na área e contamos com um texto onde a repórter Jeniffer Mendonça, principal responsável por reunir todo esse material (ao lado do nosso consultor Marcelo Soares, da Lagom Data), conta os bastidores dessa saga.
Nosso objetivo com esse índice está longe de ser uma celebração sobre esses dados. O que queremos é que sirva de alerta para a sociedade e poder público para mudar o estado atual da falta de transparência quando o assunto é segurança pública — em uma democracia, se espera que o Estado trabalhe junto e a favor da sociedade, e não contra. Nos orgulhamos muito do impacto que nosso jornalismo causa, seja soltando pessoas inocentes ou prendendo policiais criminosos, e acreditamos que nosso índice vai ser mais uma medida que fará com que o Estado entenda de vez a importância e o dever de trazer a verdade para cada brasileiro.
Créditos
Reportagem, redação e levantamento de dados: Jeniffer Mendonça
Consultoria: Marcelo Soares
Edição: Amauri Gonzo
Idealização: Fausto Salvadori
Projeto gráfico: Antonio Junião
Fotos: Daniel Arroyo
Este projeto foi realizado com recursos da Rights & Security International (RSI)
A violência armada praticada por e contra policiais é um dos temas mais importantes da segurança pública no Brasil. Devido ao peso dessa violência nos rumos da política de segurança de cada estado, a Ponte apresenta este índice inédito de transparência desses dados públicos.
Nos últimos meses, nossa equipe procurou avaliar os dados de letalidade policial (quando as polícias matam) e de vitimização policial (quando policiais morrem ou são mortos) publicados ativamente pelos governos estaduais de todas as 27 unidades da federação.
O resultado mostra uma disparidade enorme: enquanto São Paulo lidera com alguma folga o ranking, seguido por Pará e Rio Grande do Sul empatados em segundo lugar, três estados, todos da Região Norte (Acre, Rondônia e Roraima) se mostraram completamente opacos, com pontuação zero na avaliação promovida pela nossa equipe.
Apenas 10 estados publicaram voluntariamente os dois dados, sem qualquer padronização. Em seguida, fizemos 68 solicitações de dados por meio da Lei de Acesso à Informação (LAI).
Em resposta a esses pedidos, 15 estados trouxeram os dados que não publicam voluntariamente e 12 trouxeram detalhes que não constam em seus sites. Cada informação divulgada contou um ponto, e adicionamos pesos a essa nota conforme melhorava a maneira usada para fornecer esses dados. Ao final, foi calculado um índice que compara os estados numa escala que vai de zero, para quem não divulga nada, a 1, no caso hipotético de todos os itens estarem preenchidos. Na transparência ativa, nenhum estado chegou a 50% do total.
A boa notícia: esses números provam que existe espaço para mais transparência, pois os estados já têm essa informação organizada. A má notícia: o problema segue grave.
As polícias estaduais mataram 6.429 pessoas no Brasil em 2022, de acordo com o Anuário Brasileiro de Segurança Pública divulgado em julho deste ano pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP). O braço armado do Estado é o único agente que dispõe de autorização legal para empregar o uso da força – e isso inclui matar – se for necessário, o que costuma ser chamado de “mandato policial”. Nessa esteira, se o próprio Estado pode matar seus cidadãos, o mínimo que a sociedade pode requerer sobre esse poder é a prestação de contas.
A força letal que deveria ser o último recurso a ser empregado, porém, tem sido cada vez mais utilizada como primeira opção. De 2013 para 2022, o aumento foi de 190% de mortes decorrentes de intervenção policial em todo o país. Do outro lado, temos policiais civis e policiais militares sendo assassinados: foram 161 mortos de forma violenta, sendo sete em cada 10 fora de serviço em 2022. Ou tirando a própria vida, geralmente pelas más condições de trabalho: 82 vítimas de suicídio.
Só podemos fazer essa comparação porque o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, uma entidade da sociedade civil, faz esse monitoramento nacional com informações coletadas dos estados. Isso mostra a ausência de uma política federal de sistematização e disponibilização das informações estatísticas e o menosprezo à transparência quando o Estado mata e quando os representantes do Estado morrem.
Por isso, a Ponte decidiu avaliar a atuação dos governos estaduais sobre a divulgação de dados de letalidade policial e de vitimização policial. As Polícias Civil e Militar são chefiadas pelo(a) governador(a) e, geralmente, subordinadas a uma Secretaria de Segurança Pública.
Buscamos descobrir se os estados prestam contas aos seus cidadãos sobre essas duas categorias e qual o nível de detalhamento dessas informações. O objetivo não foi refazer um levantamento que o Fórum já produz tradicionalmente desde 2007.
Durante uma semana (de 5 a 11 de junho de 2023) avaliamos os sites de todas as Secretarias de Segurança Pública (que também costumam ter o nome de Defesa Social ou ter pastas próprias para as corporações) para ver se os dados de letalidade e vitimização policiais eram disponibilizados até 2022. Essa foi uma análise de transparência ativa, ou seja, das informações fornecidas pelo poder público de forma espontânea, sem ser provocado para isso.
De 6 a 11 de junho, fizemos pedidos de Lei de Acesso à Informação (LAI) aos estados solicitando os dados conforme categorias de detalhamento sobre o fato (informações da ocorrência) e do perfil da vítima. O único estado que fizemos a solicitação fora desse intervalo (em 26 de junho) foi o Maranhão devido a um problema no login da plataforma de Serviço de Informações ao Cidadão (e-Sic), que foi solucionado. Essa é a análise da transparência passiva: quando o órgão é provocado a fornecer a informação.
Estabelecemos como prazo máximo de resposta os 30 dias previstos na Lei 12.527/2011 (resposta em até 20 dias e 10 dias de prorrogação). Com isso, se a solicitação foi feita em 6 de junho, por exemplo, a resposta só seria válida se o recebimento se desse até 6 de julho. Caso a data caísse em um sábado ou domingo, o retorno seria válido se apresentado até a segunda-feira. Recursos contestando a resposta dada (seja por informação incompleta, não fornecimento do dado ou ausência de contextualização ou justificativa) só foram feitos quando o retorno estava dentro do prazo. Na aba de Notas metodológicas, explicamos como criamos a pontuação e os pesos para construir o ranking.
O que percebemos nesse período de monitoramento é que, além de os estados terem formas próprias de contabilização, as secretarias têm muito mais informações que podem ser publicizadas do que de fato divulgam espontaneamente quando comparamos as transparências ativa e passiva.
É gritante também como a maioria dos governos estaduais não sistematiza em seus sites dados de policiais civis e policiais militares mortos, sendo que o que é fornecido via LAI ainda deixa muito a desejar. Solicitamos não apenas os dados de mortes violentas desses agentes (como homicídio, latrocínio, lesão corporal seguida de morte) como de todo o tipo de morte contabilizada desses policiais e essa contagem engloba as mortes suspeitas (sem esclarecimento) e suicídios, números que as corporações ainda resistem em fornecer.
Se os estados não divulgam dados qualificados, a sociedade não consegue acompanhar o desencadear de ações tomadas pelo poder público que mexem diretamente com a vida da população nem contestar quais são as evidências que geraram uma decisão. Por isso, o objetivo deste índice é provocar os governantes a melhorar a publicização de informações de interesse público para que todo(a) e qualquer cidadão(ã) possa participar da construção de projetos, programas e políticas que lhe afetam diretamente.
Oito secretarias estaduais de Segurança Pública do Brasil não disponibilizam dados de mortes praticadas pelas polícias em seus sites oficiais: Acre, Amazonas, Bahia, Ceará, Distrito Federal, Espírito Santo, Paraná e Roraima. Se formos considerar as mortes de policiais, a lista fica maior: 17 estados que não identificam esse tipo de homicídio: Amazonas, Amapá, Bahia, Ceará, Espírito Santo, Goiás, Maranhão, Minas Gerais, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Paraná, Rondônia, Roraima, Santa Catarina e o Distrito Federal, segundo o levantamento que fizemos para este projeto. Bom, e o que isso significa?
Vamos citar dois casos. O primeiro é o de Roraima: o site da secretaria está “em manutenção” há pelo menos seis anos. Ou seja, você abre o endereço http://www.sesp.rr.gov.br/ e não vê nada além de uma contagem regressiva infinita, uma frase atribuída ao Dalai Lama, indicadores de perfis de redes sociais e o contato de telefone e e-mail do gabinete da pasta. Como saber o que está acontecendo na área de segurança pública no estado ao se deparar com esse cenário?
A outra situação: a Bahia. O site da secretaria de Segurança Pública, enquanto redigia esta reportagem, teve o layout repaginado e, por isso, as mudanças não foram consideradas na avaliação feita no início de julho de 2023. Há indicação, logo no início da página inicial, de diversas informações, inclusive de “informações criminais”, que leva ao acesso às estatísticas disponíveis desde 2014.
Contudo, para acessar os dados de mortes violentas intencionais (MVI) ou crimes violentos letais intencionais (CVLI), por exemplo, você vai precisar de algum programa para extrair o arquivo que contém os dados em dois formatos: uma planilha em Excel e um documento em PDF (que era a versão apresentada até julho de 2023 para divulgar todos esses números, sem planilha). Ali, temos os seguintes indicadores discriminados por mês e por municípios: feminicídio, roubo com resultado morte (latrocínio), lesão corporal seguida de morte, homicídio doloso, homicídio doloso no trânsito, homicídio ocorrido em presídio e homicídio doloso com indício de excludente de ilicitude (está escrito assim mesmo). Este último não sabemos se é referência a mortes praticadas pelas polícias, se é morte praticada por alguma pessoa que não seja agente de segurança pública e que atuou em suposta legítima defesa ou as duas possibilidades, porque não existe indicação de metodologia ou uma notinha de rodapé.
Ali também não estão elencadas as 1.464 pessoas mortas pelas polícias Civil e Militar da Bahia em 2022. O dado está na 17ª edição do Anuário Brasileiro de Segurança Pública, que é um documento produzido desde 2007 pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP) e reúne todo o tipo de dado relacionado ao segmento no país inteiro. O levantamento, divulgado em 20 de julho de 2023 referente ao ano de 2022, mostrou que a Bahia ultrapassou o Rio de Janeiro pela primeira vez, tornando-se o estado com o maior número absoluto de vítimas das forças policiais estaduais. A taxa no período passou de 9,5 para 10,4 mortos por 100 mil habitantes, mantendo o estado com a medalha de prata no quesito violência policial. No Brasil, os indicadores de letalidade policial como um todo registraram uma diferença de 1%, de 6.524, em 2021, para 6.430 em 2022. Mas, na Bahia, esse indicador vem aumentando ano a ano.
O destaque, obviamente, levou a imprensa a questionar o governo. A Secretaria de Segurança Pública do governo Jerônimo Rodrigues (PT) disse em nota que se tratam de mortes de “homicidas, traficantes, estupradores, assaltantes, entre outros criminosos” e que por isso não computa os registros junto com os dados de “morte praticada contra um inocente”.
Seis dias depois da divulgação do anuário, a assessoria da pasta divulgou um release em que afirma que houve redução de 5,8% da letalidade policial no estado no primeiro semestre de 2023 em comparação com o mesmo período do ano passado. “A gente está preparando um pedido de LAI [Lei de Acesso à Informação] pra saber onde esses dados estão porque eles [o governo] têm esse costume: eles falam as coisas e a gente não tem como aferir”, critica Wagner Moreira, coordenador do IDEAS – Assessoria Popular e articulador do Fórum Popular de Segurança Pública do Nordeste, já que esses números não estão disponíveis na íntegra no site da secretaria.
Quando Wagner diz “costume”, não é mentira. Se olharmos as estatísticas disponíveis no site da secretaria, desde 2014 não há indicação de números relacionados à letalidade policial nem a mortes de policiais. Vale destacar que o Partido dos Trabalhadores está à frente do governo estadual desde 2008, sendo que o atual ministro da Casa Civil, Rui Costa, foi governador da Bahia até 2022, por dois mandatos consecutivos.
Para o coordenador do IDEAS, não divulgar esses índices é uma forma de dar carta branca à atuação da polícia, independentemente de apuração, e inviabiliza a cobrança dos movimentos sociais por ações efetivas. “Não há nenhuma tecnologia de monitoramento dos autos de resistência [como eram chamadas as mortes pelas polícias], não há nenhum investimento do Ministério Público e em nenhuma outra pasta do governo para monitorar esses dados” critica.
“Os discursos continuam legitimando o modelo de atuação da polícia e criminalizando todo mundo que morre, sendo que as matérias vêm demonstrando que nem todo mundo que foi assassinado pela polícia tem esse perfil tipificado que a Secretaria de Segurança Pública fala. Nós temos jovens, crianças, idosos, pessoas que foram mortas dentro de casa por balas disparadas em operações da Polícia Militar”, prossegue o ativista. “Nossos pedidos de LAI são ignorados”, denuncia.
Samira Bueno, diretora-executiva do FBSP, explica que quando a sociedade concede à polícia o direito de usar a letalidade como força máxima de sua atuação, o mínimo que deve haver é transparência por parte do poder público sobre o emprego dessa força. “A gente ainda está naquele primeiro passo que é contabilizar quantas pessoas morrem em decorrência de intervenções policiais. E de entender quem são essas pessoas, se existe algum tipo de seletividade na atuação da polícia, seletividade racial, de gênero, etária e a gente sabe que tem”, aponta.
Ela sinaliza que, se não há transparência na atuação de agentes estatais, que deveriam ter uma obrigação e comprometimento maiores pelo poder que exercem, a credibilidade dessa instituição é abalada. “A gente sabe de quem morre é preto, pobre, jovem, do sexo masculino. Isso é um indicador que não só revela o padrão de atuação das polícias, o padrão de uso da força que é algo essencial de ser observado e monitorado numa democracia, mas também do quanto a gente pode confiar nessas organizações que são as organizações encarregadas da manutenção da lei da ordem. Se a gente não pode confiar nelas para ter acesso a esse tipo de informação, fica muito difícil confiar por outras razões.”
O coordenador do Laboratório de Governo da Faculdade de Direito da USP (LabGov), professor Marcos Augusto Perez, explica que o nível de transparência é verificado pelo nível de acesso à informação que um ente público fornece à sociedade para que ela possa aferir a qualidade do que a administração está fazendo com o seu dinheiro. “A transparência está ligada à ideia de participação na tomada de decisão, na formulação das políticas e na execução das políticas públicas”, aponta.
A Lei 12.527/2011, conhecida como Lei de Acesso à Informação, foi a primeira no Brasil a sistematizar algumas previsões constitucionais relacionadas à publicidade de atos da administração pública e obrigar União, estados e municípios a divulgar a origem e aplicação de recursos públicos, além de estabelecer como princípio básico a publicidade como regra e o sigilo como exceção.
Apesar do avanço, Fernanda Campagnucci, diretora-executiva da Open Knowledge Brasil (OKBR), destaca que a lei é muito subjetiva quando falamos de transparência ativa, ou seja, quando prevê a “divulgação de informações de interesse público, independentemente de solicitações”. “A gente tem um problema que ainda falta avançar que é a definição de quais dados são relevantes para sociedade”, explica. “A gente hoje não tem no Brasil um bom mecanismo de incorporar na agenda pública aquilo que é considerado dado de interesse público da sociedade. Na falta desses mecanismos e na falta de um controle maior sobre esse nível de abertura, a gente não tem uma autoridade nacional de dados abertos, por exemplo”, prossegue.
Isso explica a disparidade de níveis de transparência quando acessamos sites de órgãos públicos a nível municipal, estadual e federal. O acesso à informação vai desde a visibilidade de contatos de serviços à divulgação de planos de governo, orçamento e estatísticas, por exemplo. A OKBR fez um Índice de Transparência da Covid-19, entre 2020 e 2021, sobre os dados publicados nos sites dos governos estaduais, prefeituras das capitais e do governo federal com diversas variáveis de avaliação (casos, mortes, vacinação, perfil de vítimas etc) que acabou melhorando a divulgação e o acompanhamento das políticas adotadas para combater a pandemia.
Além disso, pontua Campagnucci, como a transparência passiva (o envio de informações, dados ou documentos pelo ente público por meio de uma solicitação) tem regras mais definidas na LAI, inclusive com a possibilidade de recorrer até controladorias e/ou ouvidorias, as respostas de pedidos de informação acabam se aprimorando mais e servindo de base para que outros requerimentos também sejam atendidos.
Um exemplo é a denúncia ao Tribunal de Contas da União (TCU) que a agência especializada em Lei de Acesso à Informação Fiquem Sabendo fez após ter diversos pedidos negados por ao menos três anos para acessar os dados de pagamentos a servidores inativos – pensionistas e aposentados – incluindo remunerações vitalícias a filhas de militares. O tribunal acabou determinando que o então Ministério da Economia divulgasse os dados em 2019, o que aconteceu de forma inédita no ano seguinte.
E quando entramos no segmento de informações, dados e documentos relacionados à segurança pública, a dificuldade é maior. E isso se deve à manutenção da “concepção militar burocrática de Segurança Pública vigente no país, formada ao longo de diversos
regimes autoritários e reforçada na ditadura militar”, segundo Alberto Kopittke, diretor-executivo do Instituto Cidade Segura e autor da dissertação de mestrado Segurança pública e democracia: uma história de desencontros (2016), em que se debruçou sobre a questão da transparência na segurança pública brasileira.
Ele argumenta que o combate ao autoritarismo, à militarização e a afirmação dos direitos humanos, apesar de citados em programas de governo e planos nacionais de segurança, nunca foram aplicados na prática e que as Forças Armadas, que deveriam ter tido sua atuação controlada, tiveram seu poder ampliado e “conquistaram poder de polícia” no regime democrático com aval do Executivo e do Congresso Nacional.
Inclusive, as Forças Armadas nunca reconheceram as violações cometidas por seus agentes mesmo com a instituição de uma Comissão Nacional da Verdade, em 2014, que visava dar publicidade aos casos e buscar responsabilização como meio de justiça de transição. Na época da ditadura, também foram criados batalhões especializados com alto poder de fogo e letalidade nas polícias militares, como o Batalhão de Operações Especiais (Bope), no Rio de Janeiro, e a Rondas Ostensivas Tobias de Aguiar (Rota), em São Paulo, a partir de cursos criados pelo Exército com a visão de enfrentamento a “guerrilhas” e “ações terroristas”, que permanecem atuando e servindo de modelo para outros estados, como a própria Bahia que citamos no início da reportagem.
“Ao longo de três décadas de democracia, nenhuma lei tratando sobre controle social, regulação do uso da força, formação, transparência ou prestação de contas dos órgãos de Segurança Pública foi aprovada no Congresso Federal, mas quatro Leis Complementares ampliando os poderes das Forças Armadas para atuação na área já foram aprovadas”, escreveu Alberto Kopittke na dissertação.
Exemplos dessa ampliação de poderes, diz o pesquisador, vêm com a criação de Operações de Garantia da Lei e da Ordem (GLO), a partir de 1999 e que foram regulamentadas em 2013; a possibilidade do Exército atuar em “ações preventivas e repressivas na faixa de fronteira”, a partir de 2004; e a autorização de revistar e prender pessoas em situações relacionadas ao tráfego aéreo e em missões de segurança de autoridades nacionais e internacionais, a partir de 2010.
Kopittke aponta que, apesar de a Constituição de 1988 ter separado o conceito de “segurança pública” do de “segurança nacional”, a área acabou se mantendo como “uma política de Defesa do Estado, tal qual defendia a Doutrina da Segurança Nacional, e não uma política de direitos e defesa da cidadania”. Ou seja, preserva-se o ideário de combate a inimigo interno ou aquele que ameace a ordem e a segurança institucional.
“A gente ainda tem uma visão dos dados como de segurança de Estado”, declarou à Ponte. “Dos dados de segurança pública como um poder na mão das polícias que o cidadão não tem o direito de saber, o que é totalmente equivocado numa democracia e não faz a política de segurança evoluir”, afirma.
Marcos Perez, da USP, concorda. “É uma visão de como se administração funcionasse sem o cidadão, como se não precisasse do cidadão, que ele só atrapalha, como se o Estado fosse um bem em si mesmo”, diz.
No trabalho acadêmico, Kopittke avaliou o nível de transparência nos sites das secretarias de Segurança Pública, das Polícias Militares e das Polícias Civis das 27 unidades federativas a partir de 33 itens considerados relevantes para monitorar a gestão de órgãos de segurança pela bibliografia especializada e que deveriam estar disponíveis nas páginas desses órgãos sem necessidade de solicitação ou contato com gestores.
Dentre os itens, havia desde o fato de o órgão ter de fato um site, divulgasse contatos de serviços, política estadual de segurança pública a normas de uso da força, relatório sobre mortes e feridos decorrentes de intervenção policial, policiais mortos e feridos, indicadores de criminalidade, código de ética, relatórios das corregedorias, entre outros.
Dos 81 sites pesquisados por ele, a média foi de 18% de transparência nas instituições de Segurança Pública no país. Especificamente sobre o tema que estamos tratando, o levantamento identificou que quatro órgãos (5%) publicaram relatório de policiais mortos e seis (7%) sobre a letalidade policial.
Apesar de existir um sistema específico de coleta, análise e integração de dados de segurança pública no âmbito federal, que é o Sistema Nacional de Informações de Segurança Pública, Prisionais, de Rastreabilidade de Armas e Munições, de Material Genético, de Digitais e de Drogas (Sinesp), o diretor do Instituto Cidade Segura aponta que “ainda falta uma postura mais forte e mais indutiva” da Secretaria Nacional de Segurança Pública (Senasp), que é responsável pelo Sinesp e é subordinada ao Ministério da Justiça e da Segurança Pública.
A Lei 12.681/2012, que formalizou o Sinesp, previa expressamente a divulgação dos seguintes indicadores entregues pelos governos federal e estaduais: ocorrências criminais registradas, registro de armas de fogo, entrada e saída de estrangeiros, pessoas desaparecidas, execução penal e sistema prisional, recursos humanos e materiais dos órgãos e entidades de segurança pública, condenações, penas, mandados de prisão e contramandados de prisão, repressão à produção, fabricação e tráfico de crack e outras drogas ilícitas e a crimes conexos, bem como apreensão de drogas ilícitas e taxas de elucidação de crimes. Toda a base é de registros policiais.
Além disso, obrigava as administrações a “repassar compulsoriamente os dados sobre homicídios reportados e taxas de elucidação de crimes”. Contudo, com sanção da Lei 13.675/2018, que criou a Política Nacional de Segurança Pública e Defesa Social (PNSPDS) e instituiu o Sistema Único de Segurança Pública (Susp), todas essas disposições foram revogadas e, dentro dos objetivos do Sinesp, não foram detalhados os índices que deveriam ser divulgados. Por outro lado, a lei incluiu no rol de números um banco de dados de perfil genético e digitais e somou como objetivos do Sinesp a avaliação e acompanhamento das políticas públicas.
A lei de 2018 transformou, de certa forma, os indicadores como “metas de excelência” dos estados para serem avaliadas pelo Ministério da Justiça e Segurança Pública, como, por exemplo, “as atividades de polícia judiciária e de apuração das infrações penais serão aferidas, entre outros fatores, pelos índices de elucidação dos delitos, a partir dos registros de ocorrências policiais, especialmente os de crimes dolosos com resultado em morte e de roubo, pela identificação, prisão dos autores e cumprimento de mandados de prisão de condenados a crimes com penas de reclusão, e pela recuperação do produto de crime em determinada circunscrição”. Não há menção explícita sobre mortes praticadas por agentes estatais ou de policiais mortos.
O que se manteve da lei de 2012 foi a previsão de que se os governos federal e estaduais deixarem de fornecer ou atualizar seus dados no Sinesp não poderão receber recursos do Fundo Penitenciário Nacional (Funpen) e agora também do Programa Nacional de Segurança Pública com Cidadania (Pronasci) “nem celebrar parcerias com a União para financiamento de programas, projetos ou ações de segurança pública e defesa social e do sistema prisional”.
No primeiro mês da gestão do presidente Lula (PT), foi sancionada a Lei 14.531/2023, que incluiu a determinação de o Sinesp produzir dados voltados a profissionais da segurança pública e defesa social sobre os seguintes temas: qualidade de vida e a saúde; vitimização, inclusive fora do horário de trabalho; profissionais que passaram a ter deficiência em decorrência de vitimização na atividade; profissionais que passaram a ser dependentes químicos em decorrência da atividade; e sobre transtornos mentais e comportamento suicida dos profissionais de segurança pública e defesa social. O projeto foi apresentado em 2019 pelo senador Alessandro Vieira (MDB-SE).
As mortes praticadas pelos agentes de Estado continuarem fora desse escopo, para Samira Bueno, indica uma resistência a se questionar a legitimidade das ações letais, sendo que esse índice é reconhecido na Classificação Internacional de Doenças da Organização Mundial da Saúde (OMS) desde a década de 1990. Essa metodologia teve sua última atualização em 2022 (CID-11) e se trata de uma padronização global das estatísticas sobre mortalidade e morbidade (presença de doenças) da população. A letalidade policial está indicada no item 23, que se refere à mortalidade por causas externas e, dentro dele, há as classificações de “intervenção legal”, que se desdobra em pelo instrumento empregado, e “conflito armado”, que categoriza uso de armas de guerra.
Contudo, a diretora do FBSP pondera que essa categoria ainda é subnotificada justamente pela base de informação ser diferente, já que obrigatoriamente uma morte praticada por um agente de Estado é notificada e detalhada em boletim ou registro de ocorrência (BO ou RDO) com essa classificação. Por isso, os registros policiais acabam computando mais dados do que os médicos que vão atender uma pessoa que foi socorrida a uma unidade de saúde e morreu depois. “Nos dados da saúde, o atestado de óbito está preocupado em determinar a causa da morte. Então, é uma perspectiva epidemiológica que interessa para [o campo da] saúde e a autoria importa menos”, explica. “Então, parte desses casos entra simplesmente como homicídio [de forma genérica] na conta da saúde”.
Além disso, Samira entende que a ausência de um monitoramento contínuo, sistematizado e padronizado das mortes praticadas pelas polícias também vêm de uma interpretação de que essas mortes não são homicídios dolosos (com intenção ou quando se assume risco de matar) por causa do peso da tipificação do Código Penal e por um caráter ideológico de presumir legalidade nessas ações, em que se pré-julga que a pessoa resistiu a uma abordagem policial, antes de uma investigação.
“Quando a gente fez essa categoria mortes violentas intencionais [para construir o Anuário] foi justamente para não sermos acusados de estar determinando a licitude ou a ilicitude da ocorrência porque nós não somos a Justiça”, avalia. “Não cabe a uma organização da sociedade civil dizer se foi legítimo ou não segundo os parâmetros da legislação brasileira. O que a gente está dizendo é que houve intencionalidade. Um policial assumiu o risco de matar uma pessoa e levou essa pessoa à morte no momento que ele apertou o gatilho. Isso tem que ser contabilizado como morte violenta”.
Mesmo não existindo uma tipificação penal de “auto de resistência”, era assim que se costumava notificar as mortes praticadas pelas polícias nos boletins de ocorrência. A partir de 2016, a Resolução Conjunta 5/2015, do Departamento de Polícia Federal e do Conselho Superior de Polícia, estabeleceu que as polícias judiciárias (investigativas, como as Civis) padronizassem essas ocorrências como “homicídio decorrente de oposição à intervenção policial”, o que não é muito diferente de “auto de resistência”. Depois, em 2018, a portaria 229 do então Ministério da Segurança Pública, que era separado do da Justiça, estabeleceu a classificação “morte por intervenção de agente do Estado”.
Tanto nas avaliações de transparência ativa dos sites das secretarias de Segurança Pública quanto nas respostas dos pedidos de LAI feitos pela Ponte, os estados adotam categorias diferentes. Pela resolução exata, apenas Mato Grosso do Sul utiliza a expressão de 2015 na planilha enviada via LAI, mas na divulgação dos dados no site classifica como “morte por intervenção de agente de Estado”.
“Morte decorrente de intervenção policial” ou “morte por intervenção de agente de Estado”, sem o “oposição”, aparece em São Paulo, Amazonas, Amapá, Distrito Federal, Goiás, Mato Grosso, Pará e Paraná. O Rio de Janeiro começou usando “homicídio decorrente de intervenção policial” nas planilhas enviadas por LAI, mas passou a adotar “morte por intervenção de agente de estado” a partir de 2016. Os demais estados têm variações entre “confronto policial”, “resistência com resultado morte” e “enfrentamento policial”. Já as mortes de policiais, quando violentas, costumam ser classificadas como homicídio, mesmo quando ocorrem em serviço.
“É um homicídio, segundo a legislação brasileira”, enfatiza Samira. “E eles [os estados] ficam tentando usar outras nomenclaturas para suavizar, mas continua sendo um homicídio”. Para ela, essas expressões são “uma estratégia retórica para dizer que o policial não mata e que essas ocorrências decorrem da opção do confronto por parte do criminoso”.
Tanto Alberto Kopittke, do Instituto Cidade Segura, quanto Samira Bueno, do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, sinalizam que falta uma fiscalização mais efetiva da Senasp sobre a remessa de recursos estar condicionada ao envio dos dados pelos estados e também uma padronização de divulgação dos índices, já que o Sinesp nunca se consolidou com uma atualização periódica de dados, lacuna que vem sendo preenchida pelo Anuário Brasileiro de Segurança Pública, que é uma iniciativa da sociedade civil que utiliza a LAI.
“O Ministério Público Federal, que poderia fazer o controle externo, que deveria fazer o controle externo, não faz, nem das polícias nem do fundo nacional”, critica Kopittke.
“A gente sabe que a capacidade que o governo federal tem de indução é relativamente limitada porque ele pode recomendar os fatos, e se o estado resolver que não vai adotar, simplesmente não adota. Mas, se tiver uma liderança nacional já é meio caminho andado. A gente sabe que mais da metade dos estados dependem do governo federal para fazer investimentos”, complementa Samira.
Kopittke concorda, tanto que, na sua dissertação, ele redige uma proposta de legislação voltada à divulgação de estatísticas na segurança pública. O trabalho alcançou a Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul e, em 2021, foi sancionada a Lei 15.610, inspirada no projeto, e o Decreto 56.258 que a regulamenta, que determina publicação de diversos indicadores, incluindo mortes praticadas pelas polícias e mortes de policiais, com detalhamento de dia e hora do fato, tipo do crime ou contravenção penal, cidade onde o fato ocorreu, local onde ocorreu, número de vítimas, idade, sexo e cor das vítimas em formato aberto que permita o cruzamento de informações, ou seja, microdados de cada ocorrência, mas também preservando a privacidade das vítimas, não as identificando. Nesse rol também estão os dados sobre denúncias nas corregedorias das polícias com detalhamento de ocorrências, tipo de crime cometido pelo policial e se houve punições.
Para ele, foi “um avanço” pela iniciativa, principalmente porque “houve um diálogo e a proposta foi assinada por deputados de várias correntes, de vários partidos” e a gestão, sob o governador Eduardo Leite (PSDB), “era um pouco mais aberta nessa questão de gestão por resultado”. O projeto foi apresentado em 2019 pelos deputados Luiz Fernando Mainardi (PT), Sebastião Melo (MDB) e Luciana Genro (PSOL) e teve 50 votos pela aprovação, um contrário e uma abstenção.
No entanto, ele aponta que itens que ficaram de fora poderiam ter sido acrescentados, como o georreferenciamento das mortes para precisar o local das ações. O trabalho dele também inspirou um projeto de lei que está parado na Câmara dos Deputados. De autoria do deputado Reginaldo Lopes (PT-MG), o PL 4894/2016 já foi aprovado pelas comissões de Constituição e Justiça e Segurança Pública e está pronto para ir a plenário para ser votado. Nesse caso, inclui pontos abordados na proposta de Kopittke que não estão na lei do governo gaúcho, como, por exemplo, a divulgação de normas, procedimentos operacionais e conteúdo dos cursos de formação adotados pelas forças de segurança pública, algo que costuma ser tratado pelo viés do sigilo nas polícias.
“A gente não consegue avançar no conhecimento do que funciona e do que não funciona quando a gente não tem dados”, pontua o pesquisador. “Quando não tem dado, é tudo muito no discurso político”, afirma ele, que também é autor do Manual de Segurança Pública baseado em evidências (2023).
Marcos Perez, do LabGov da USP, e Fernanda Campagnucci, da Open Knowledge Brasil, destacam que a administração pública precisa se conscientizar sobre a importância da produção de dados de maneira transparente e investir em estrutura e capacitação de profissionais para alimentar essas informações. “Você tem lugares que já têm uma sociedade civil mais atuante, um jornalismo mais investigativo que vai demandar e pode fazer avançar a abertura dos dados, mas em outros lugares, não. Uma legislação específica ajudaria, mas mais do que isso: uma política nacional pensada com a sociedade acho que ia ajudar a avançar mais”, sugere Campagnucci.
Como a segurança pública é uma política implementada pelos estados, cada unidade da federação tem publicado suas informações com padrões diferentes, às vezes até com entendimentos diferentes sobre o que é passível de divulgação. Hoje, por exemplo, apenas 7 dos 27 estados disponibilizam de maneira espontânea dados de mortes de policiais.
Por isso, este projeto também visa indicar caminhos para aprimorar a transparência efetiva no monitoramento de mortes praticadas por agentes de estado e vitimização de profissionais de segurança pública. Anteriormente, na série colaborativa Um Vírus e Duas Guerras, em que monitoramos os dados sobre feminicídios na pandemia, também produzimos um relatório de boas práticas com outros seis veículos independentes.
Os parâmetros incluídos nesta seção se baseiam no guia Publicadores de dados: da gestão estratégica à abertura (2021), produzido pela Open Knowledge Brasil e pela Escola de Dados. Uma das referências essenciais para o setor público sobre como abrir dados do zero ou aprimorar o que já é divulgado, o documento partiu de experiências já existentes no setor público brasileiro. Indica passo a passo as possibilidades de gestão, abertura de dados, observância à Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD), armazenamento, alimentação e visualização das informações em formato aberto, acessível e compartilhável, que permite à sociedade fazer análises e cruzamentos independentes a partir das publicações.
O Sistema Nacional de Informações de Segurança Pública, Prisionais, de Rastreabilidade de Armas e Munições, de Material Genético, de Digitais e de Drogas (Sinesp), do governo federal, recebe dados estatísticos dos estados e condiciona o fornecimento à repasse de recursos, mas não apresenta uma padronização de como divulgar os dados que poderia ser integrada aos departamentos de estatística dos estados.
Esses itens de qualidade do fornecimento da informação são utilizados aqui como pesos. A nota básica de cada estado é calculada a partir dos itens de informação que fornecem sobre cada caso – avaliamos 22 variáveis (São Paulo, que é o estado que atendeu ao maior número delas nos casos de mortes praticadas pelas polícias, deixou a desejar quando avaliada a vitimização policial, por exemplo). Esse número recebe acréscimos percentuais de acordo com a qualidade dos dados fornecidos. Quanto mais importante for o item de qualidade, maior é o acréscimo que ele traz.
Consideramos que todos os estados têm a possibilidade de melhorar a maneira como fornecem informações públicas, e este índice prova isso. Com toda a diferença entre os estados, praticamente todos têm algum ponto de destaque. Por isso, a cada item de recomendação, listamos as melhores práticas observadas nas secretarias analisadas.
A Lei Brasileira de Inclusão (13.145/2015), em seu artigo 3º, obriga que os sites sejam acessíveis para todas as pessoas, por isso toda área de informações públicas deve ter a presença de ferramentas de acessibilidade digital para quem tem alguma deficiência – como leitura de tela ou contraste de cores, para quem tem baixa visão. Neste índice, ter opções de acessibilidade aumentava em 25% a nota de um Estado.
Dos 27 estados, porém, apenas 17 têm esse tipo de ferramenta nos portais de secretarias de Segurança Pública. Apesar de São Paulo liderar o ranking de transparência ativa no detalhamento dos índices de mortes decorrentes de intervenção policial (MDIP), o portal da SSP não oferecia opções de acessibilidade na sua página inicial. O botão de “contraste de cores” estava no final da página, com pouco destaque.
Duas unidades federativas se destacaram nas melhores práticas de acessibilidade.
Os dados e relatórios estatísticos precisam estar rapidamente disponíveis no menu principal do site. Utilizamos o critério do ranking feito pelo Laboratório de Governo da Faculdade de Direito da USP (LabGov) sobre os portais de transparência dos estados brasileiros entre 2021 e 2022: a informação buscada deveria ser encontrada no site em até três minutos.
A base, segundo o documento, foi uma palestra realizada em 2019 por Patrícia Roedel, diretora do LabHacker, órgão de inovação da Câmara dos Deputados. A reformulação do site da Câmara dependeu da análise de tempo para acessar a informação e, segundo ela, “após os primeiros três minutos de busca, a maior parte dos cidadãos desiste e acaba frustrada no seu desejo de obter a informação a qual tem direito”.
Por isso, a Ponte adotou essa variável para avaliar a transparência ativa. Se a informação era encontrada em menos de 3 minutos, um Estado tinha aumento de 10% em sua nota.
Como o tempo gasto para chegar a uma informação pode variar de pessoa para pessoa, também levamos em conta quantos cliques a partir da homepage eram necessários para cumprir a mesma tarefa. Quando o link está diretamente na homepage da secretaria, houve aumento de 10% na nota. Quando são necessários dois ou três cliques, houve acréscimo de 5% – nos dois casos, geralmente há também o acréscimo pelo tempo gasto.
Das 27 unidades federativas pesquisadas, apenas 14 se enquadraram. Destaques:
Para que os cidadãos possam fazer cruzamentos e análises dos dados de forma independente, é preciso poder baixar os dados em formato acessível por máquinas – planilhas eletrônicas (Excel, LibreOffice), valores separados por vírgulas (.csv), entre outros. Esses estados tiveram aumento de 15% em sua nota.
Dos estados pesquisados, nove optaram fornecer os dados para download em PDF, um formato de impressão que não permite a leitura por máquinas – é preciso habilidade técnica para converter esse dado em uma planilha que possa ser analisada de maneira independente. A publicação em PDF inclusive gera trabalho extra para os servidores: originalmente, o dado publicado já estava em formato tabular. Como a secretaria teve a preocupação de colocar os dados para baixar, porém, ela ganha aumento de 1% em sua nota. É pouco, mas pode melhorar no próximo ano.
Apenas quatro estados forneciam dados com a possibilidade de baixar planilhas: Rio Grande do Norte, Rio de Janeiro, São Paulo e Rio Grande do Sul.
Os dados baixados podem ter maior ou menor grau de detalhe. Quanto maior for o grau de detalhe (desagregação), melhores serão as análises independentes que se pode fazer desses dados. Esses dados são publicados geralmente em formatos legíveis por máquinas.
A melhor prática nesse sentido é a publicação de microdados. Pela definição do guia da Open Knowledge Brasil, os microdados indicam cada caso de forma individualizada, em uma linha da tabela.
Ao invés de uma planilha dizendo que houve 10 mortes decorrentes de intervenção policial num dado mês, ela traria dez linhas, cada uma detalhando características da vítima e da situação em que a morte ocorreu. Nesse caso, o Estado recebe um acréscimo de 25% em sua nota.
Um exemplo com apenas oito das 22 variáveis que analisamos:
Caso publique apenas dados agregados por município e tipificação, por exemplo, sem a opção de individualizar os casos, recebe apenas acréscimo de 10%.
Dois Estados se destacaram na desagregação:
O uso de gráficos, interativos ou não, é um elemento eficaz para comunicar ao público as dimensões do que está sendo informado. No caso das mortes decorrentes de intervenção policial, os gráficos podem mostrar a evolução dos casos, a concentração geográfica, a composição das vítimas por cor e raça etc.
Publicar infográficos não substitui a importância de permitir o download de dados detalhados. O Instituto de Segurança Pública do Rio de Janeiro, por exemplo, apresenta tanto uma aba de arquivos disponíveis para download quanto um setor de visualização com painéis interativos.
Atualmente, sete estados publicam seus dados de MDIP em forma de infográficos. Apenas o Rio de Janeiro facilita o download dos dados completos, além da filtragem avançada. Mato Grosso do Sul, Pará, Pernambuco e Tocantins oferecem visualizações com filtros, mas não permitem o download dos dados. Piauí tem gráficos apenas por indicador, ano e mês; já a Paraíba divulga alguns dados em visualização da ferramenta Flourish, gratuita, mas a filtragem é limitada a uma ou duas categorias.
Independente de permitir o download dos dados, destacam-se pela clareza gráfica estes estados:
A segurança pública é um setor que trabalha com muitas definições que podem variar de nome entre um estado e outro – mortes decorrentes de intervenção policial ainda são chamadas de “mortes em confronto” em alguns lugares, por exemplo. As unidades envolvidas também podem causar confusão – até 2016, São Paulo contabilizava “ocorrências” de mortes praticadas por policiais, o que gerava um número menor do que o de vítimas (pode haver mais de uma vítima num mesmo caso).
Por isso, não basta apenas abrir os dados: é importante dar publicidade à metodologia adotada para a confecção dessa base. Quase dois a cada três estados analisados indicam sua metodologia para publicação de dados de MDIP, mas vimos a presença de dicionário de dados de maneira clara e didática apenas em seis secretarias de Segurança Pública: Mato Grosso do Sul, Rio Grande do Sul, São Paulo, Rio de Janeiro, Pernambuco e Paraíba.
O Mato Grosso do Sul e o Rio de Janeiro, por exemplo, especificam no dicionário de dados tanto as mortes praticadas pelas polícias quanto as mortes de policiais, o que não observamos na maioria das secretarias, já que as mortes de agentes de estado costumam estar integradas aos casos de homicídio, sem uma filtragem desse tipo de categoria.
Com a falta de padronização dos estados sobre o assunto, a Ponte considerou trabalhos realizados por outras entidades que produzem pesquisa e estatística voltada à segurança pública para mensurar quais variáveis são importantes para a realização de análises aprofundadas, observando-se também a LGPD, além da própria experiência da equipe da Ponte ao monitorar violência policial.
A principal referência que tivemos é a pesquisa Letalidade da ação policial no Rio de Janeiro (1997), coordenada pelo sociólogo Ignacio Cano, e que até hoje é utilizada em produções especializadas para avaliar o uso da força por agentes públicos. Também nos inspiramos na metodologia voltada às Ouvidorias de Polícia do país para monitoramento da letalidade policial (2008), construída pelo Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo (NEV-USP) em parceria com o governo federal, e no artigo Policial, risco como profissão: morbimortalidade vinculada ao trabalho (2005), das pesquisadoras Edinilsa Ramos de Souza e Maria Cecília de Souza Minayo. Além das edições dos anuários e pesquisas produzidas pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública.
Um dos modelos adaptados pela Ponte nos pedidos de LAI para este projeto foi o do curso de dados em segurança pública feito pelo Instituto Sou da Paz. A organização, enquanto este guia estava sendo escrito, também publicou um guia para jornalistas sobre o assunto que traz esse modelo para dados de mortes violentas. Nele, são consideradas duas diretrizes: informações sobre a) o fato, ou seja, características de como a morte aconteceu; e b) perfil da vítima.
Sobre o fato:
1) identificação do número da ocorrência, geralmente pelo número do boletim de ocorrência; 2) a delegacia onde o fato foi registrado;
3) o município onde o fato aconteceu;
4) o endereço do fato (completo ou, no mínimo, o bairro);
5) data da ocorrência (dia, mês e ano);
6) hora do fato;
7) georreferenciamento (ou seja, indicação de latitude e longitude) do fato;
8) tipo de local onde o fato ocorreu (via pública, residência etc);
9) instrumento utilizado na morte (arma de fogo, por exemplo).
Sobre a vítima:
1) idade;
2) sexo;
3) profissão ou ocupação;
4) cor/raça;
5) bairro de residência.
No caso de MDIP, acrescentamos a categoria de 9) se a morte foi praticada por policial civil ou policial militar; 10) se o policial estava em serviço ou de folga quando cometeu a morte.
Já para morte de policiais, incluímos no fato 10) natureza da morte (homicídio, suicídio, morte suspeita etc) e no perfil substituímos no local de profissão ou ocupação para 3) se a vítima era policial civil ou policial militar; e 6) se a morte aconteceu quando estava de serviço ou de folga.
No caso dos dados de perfil, tanto para MDIP quanto para vitimização policial, incluímos, ainda, a categoria 5) orientação sexual da vítima e substituímos o item 2) “sexo” por “gênero”, a fim de incorporar a comunidade LGBT+ nas estatísticas, tendo em vista que os levantamentos relacionados à violência contra essa população começaram a ser sistematizados por organizações da sociedade civil, como Grupo Gay da Bahia (GGB) e Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra), devido ao apagamento e escassez de registros fornecidos por Secretarias de Segurança Pública.
O Fórum Brasileiro de Segurança Pública passou a integrar a violência contra essa comunidade nos indicadores monitorados a partir do 14º anuário, publicado em 2020 referente a dados de 2019. Contudo, ainda não temos levantamentos que indiquem violência policial contra a população LGBT+, nem se a identidade de gênero e/ou a sexualidade do(a) policial teve interferência na sua morte como causa presumida ou reconhecida no decorrer das investigações.
Assim, os itens mínimos que consideramos importantes para análises de microdados sobre mortes decorrentes de intervenção policial são:
Sobre o Fato:
a) Número do Boletim de Ocorrência e/ou ID da ocorrência;
b) Município;
c) Delegacia de Circunscrição do fato (onde o fato ocorreu);
d) Data da ocorrência (dia, mês e ano);
e) Hora da ocorrência;
f) Georreferenciamento (ou seja, indicação de latitude e longitude) do fato*;
g) Tipo de local da ocorrência (via pública, residência, estabelecimento comercial, etc.);
h) Instrumento utilizado no cometimento da morte;.
i) Se a morte foi praticada por policial civil ou policial militar;
j) Se o policial que praticou a morte estava em serviço ou de folga.
Sobre a Vítima:
a) Idade;
b) Gênero;
c) Raça/cor;
d) Bairro de residência;
e) Profissão ou ocupação;
f) Orientação sexual.
*Se a morte aconteceu em domicílio, pelo menos a indicação de bairro onde a morte ocorreu.
E para vitimização policial, ou seja, mortes de policiais:
Sobre o Fato:
a) Número do Boletim de Ocorrência e/ou ID da ocorrência;
b) Município;
c) Delegacia de Circunscrição do fato (onde o fato ocorreu);
d) Data da ocorrência (dia, mês e ano);
e) Hora da ocorrência;
f) Georreferenciamento (ou seja, indicação de latitude e longitude) do fato*;
g) Tipo de local da ocorrência (via pública, residência, estabelecimento comercial, escola, etc.);
h) Instrumento utilizado no cometimento do crime;
i) Tipo de ocorrência (homicídio, latrocínio, lesão corporal seguida de morte, suicídio, morte suspeita, morte natural ou vinculada à doença etc);
Sobre a Vítima:
a) Idade;
b) Gênero;
c) Raça/cor;
d) Bairro de residência;
f) Orientação sexual;
e) Se é policial civil ou policial militar;
g) Se a morte aconteceu quando a vítima estava em serviço ou de folga.
*Se a morte aconteceu em domicílio, pelo menos a indicação de bairro onde a morte ocorreu.
Como nosso escopo do projeto abordou apenas policiais civis e policiais militares por serem corporações subordinadas à Secretaria de Segurança Pública (ou uma pasta para cada corporação, como acontece no Rio de Janeiro), não abordamos letalidade e vitimização relacionadas a policiais penais, guardas municipais ou outras forças de segurança pública.
Primeiro porque não estão subordinadas a uma mesma pasta ou esfera administrativa, o que ampliaria o trabalho de levantamento e consequente análise do projeto. Em segundo lugar, pelas atribuições constitucionais vinculadas às polícias civis e militares, responsáveis, respectivamente, por investigação e policiamento ostensivo. Os agentes penitenciários que fazem escolta e vigilância foram reconhecidos como categoria de polícia em 2019, sendo que ainda dependem de regulamentação nos estados, e as guardas municipais não têm função de polícia, embora também atuem na área de segurança pública.
Contudo, o modelo de sugestão apresentado não exclui as demais corporações, já que, obrigatoriamente, a Polícia Civil tem a prerrogativa de registrar todas as ocorrências letais, independentemente da corporação. Por isso, ao invés da nomenclatura genérica de “morte decorrente de intervenção de agente de estado” ou “vitimização de agente de estado”, substitui-se pela corporação envolvida.
O que Dalai Lama e a Secretaria de Segurança Pública (Sesp) de Roraima têm em comum? Absolutamente nada, mas uma frase atribuída ao religioso budista tibetano que pode facilmente ser encontrada em sites de ditos e pensamentos de celebridades e figuras públicas, sejam lá verídicos ou não, está estampada no site da pasta: “O amor e a compaixão são necessidades, não luxos. Sem eles a Humanidade não pode sobreviver”. Logo acima está escrito “Segurança Pública – em manutenção” e abaixo da citação uma contagem regressiva que beira há semanas, sem informar exatamente o que está por vir.
Eu tive acesso a esse layout em maio de 2022, quando eu e parte da equipe da Ponte estávamos participando de um curso de dados ministrado pelo jornalista Marcelo Soares, fundador da Lagom Data, e que durou pouco mais de um mês. O intuito era qualificar melhor nossas produções de análises de dados e acabamos por consultar sites das secretarias de Segurança Pública de vários estados. Um dos achados se transformou na reportagem Mortes sem cor: dados sobre raça de mortos pela polícia deixam de ser registrados em SP, quando identificamos que 44,6% das 139 mortes praticadas pelas polícias Civil e Militar, de janeiro a abril de 2022, não informavam a cor das vítimas e cujo fenômeno passou a se apresentar com mais evidência a partir de dezembro de 2020.
Por causa dessa matéria, pensamos em criar um índice de transparência para verificar como os governos estaduais divulgam números tanto de letalidade quanto de vitimização policiais. Até tinha começado a fazer os pedidos via Lei de Acesso à Informação (LAI) em julho do ano passado, porque a ideia original era avaliar a transparência passiva (quando pedimos os dados ao órgão público), mas não conseguimos tocar o projeto por duas razões: redação enxuta (eu e mais uma pessoa como repórteres) e as eleições gerais que, particularmente em 2022, carregavam muito tensionamento político, para dizer o mínimo, e que precisavam da nossa atenção para a cobertura.
Com a virada do ano, decidimos entrar de cabeça na construção do índice: eu (repórter), Amauri Gonzo (editor), Fausto Salvadori (diretor de redação) e Marcelo Soares. Além dos pedidos de LAI, também avaliaríamos a transparência ativa (quando o órgão público divulga dados e informações por iniciativa própria, sem ser provocado para isso) dos dados de mortes cometidas pelas polícias e de mortes de policiais.
E é aí que entra a imagem que descrevi no início: o site da Secretaria de Segurança de Roraima. Dependendo de quando você estiver lendo este texto, talvez ainda esteja do mesmo jeito — porque até a publicação deste levantamento estava. Se não (e espero que não esteja), você pode ver aqui como aparecia para quem se dirigia ao endereço http://www.sesp.rr.gov.br/, já que salvei a tela no Way Back Machine. Olhando as datas antigas nessa mesma plataforma que serve como um acervo da internet em que você pode salvar qualquer página, vi que o site da Sesp está desse jeito pelo menos desde 2017. É bizarro que um site de um órgão público esteja “em manutenção” há tanto tempo e sem explicações. Para piorar, nem minhas solicitações de LAI a pasta (e as polícias) responderam (pois é).
Esse é um exemplo de uma das situações que me deparei nesse processo, em que pude vivenciar como as 27 unidades federativas lidam com a temática. Nenhum de nós da Ponte é especialista em transparência, por isso consideramos todo o conteúdo já divulgado anteriormente por entidades que trabalham, estudam e produzem conhecimento sobre dados abertos e sobre segurança pública. O nível de detalhamento dos dados que são fornecidos é muito importante para uma análise mais qualificada porque sem evidências não há como pensar, propor e implementar políticas públicas.
Para criar as categorias e pontuações da transparência ativa (análise dos sites das secretarias de Segurança Pública dos estados), levamos em consideração o Ranking de Transparência 2021-2022, feito pelo Núcleo de Estudos da Transparência
Administrativa e da Comunicação de Interesse Público (Netacip) da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (FDUSP), e o Índice de Transparência da Covid-19, feito pela Open Knowledge Brasil.
Nesse processo de fazer 68 solicitações de acesso à informação (considerando a competência de resposta das secretarias de Segurança, Polícias Civis e Polícias Militares), utilizei bastante o ebook “LAI nas redações – formação para jornalistas”, criado pela agência especializada em Lei de Acesso à Informação Fiquem Sabendo, e o repLAI, um chatbot da Abraji em parceria com a Transparência Brasil que ajuda desde a fazer pedidos a formular recursos com bases nas justificativas mais recorrentes dos órgãos públicos para negar o fornecimento de algum dado ou informação.
É importante destacar a contribuição desses trabalhos para que não apenas jornalistas como eu possam melhorar a atuação, mas para você que não é da área, e por algum motivo chegou até aqui, também tenha algum norte quando quiser enveredar pelo acesso a informações públicas – que lhe são de direito – e não sabe muito bem por onde começar.
Para as variáveis da transparência passiva, adaptei um modelo de pedido de acesso à informação feito pelo Instituto Sou da Paz no curso de jornalismo de dados e segurança pública que participei, voltado para requerimento de informações de homicídios.
Também me inspirei no Mapa de Acesso a Informações Públicas de 2023, produzido pela Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji), que avaliou as transparências ativa e passiva das Polícias Militares (e que foi publicada durante o planejamento deste projeto). O documento continha a metodologia de avaliação e, nos anexos, o modelo de questionamentos.
Nas categorias, levamos em consideração que os estados respondessem todos os itens e dimensionamos pesos de pontuação. Então, pedi informações sobre a caracterização da morte (cidade, endereço, delegacia registrada, data, hora, se a morte foi provocada por policial civil ou policial militar, se a morte aconteceu em serviço ou na folga e por aí vai) e o perfil da vítima (cor/raça, idade, profissão ou ocupação, bairro de residência, etc). Você pode ler o modelo de perguntas que eu fiz aqui.
Um dos itens que não costumava ver em divulgação de dados sobre mortes decorrentes de intervenção policial (MDIP) e de vitimização de policiais e que incluí neste projeto foi “orientação sexual” das vítimas e, ao invés de indicar campo de “sexo”, coloquei “gênero”, para integrar a complexidade das identidades do público LGBT+. Na Ponte, costumamos publicar levantamentos feitos por associações voltadas a essa população que, na falta de atuação das autoridades públicas, passaram a produzir dados com o que tinham: notícias na imprensa, como é o caso da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra) e do Grupo Gay da Bahia (GGB). O Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), que realiza um levantamento nacional de todos os dados de segurança pública anualmente, também têm denunciado e provocado os órgãos a informarem dados qualificados que identifiquem a comunidade LGBT+ nos registros. Contudo, não temos informações do quanto a letalidade e a vitimização policiais afetam esse grupo.
São Paulo é o estado em que eu vivo e monitoro com mais frequência por ser também onde a Ponte está sediada. Mesmo tendo uma transparência ativa de MDIP muito rica e em formato aberto, a pasta não informa esse tipo de item nas planilhas disponibilizadas. Detalhe: desde 2015, a Secretaria de Segurança Pública passou a incluir campos de nome social, identidade de gênero e orientação sexual nos boletins de ocorrência, algo que foi tornado obrigatório em 2021 por decisão do Tribunal de Justiça, após uma ação da Defensoria Pública, e depois foi acordado judicialmente em 2022 para que os campos permanecessem no sistema de registro.
Quando fiz a solicitação à pasta, a planilha enviada ainda não tinha esse dado e nem havia justificativa da ausência. Entrei com um recurso questionando isso e a secretaria apenas acrescentou duas colunas com os campos “orientação sexual” e “identidade de gênero” vazios nas planilhas. Na resposta, pontuou que “as informações solicitadas não são controladas /sistematizadas por esta Secretaria“ e que “os campos são subnotificados e dependem de declaração expressa da vítima”. Estamos falando de vítimas mortas. Como elas vão fazer autodeclaração? Como saber se algum homicídio teve causa presumida de LGBTfobia se o parâmetro for esse?
Inclusive, foi praticamente comum eu ter de impetrar recursos para obter justificativas da maioria dos estados sobre a ausência desse campo, já que a primeira resposta não esclareceu a ausência. As respostas iam desde que não existiam esse dado, que o sistema de registro não comportava esse tipo de campo, até que o preenchimento dependia dos policiais lá na ponta, que não é obrigatório preencher esse item ou que haveria trabalho adicional para verificar quais boletins de ocorrência continham ou não essa informação.
No Distrito Federal (DF), uma confusão sobre orientação sexual e identidade de gênero aparece na planilha enviada pela Polícia Civil para casos de MDIP, já que a coluna que aparentemente deveria ser para orientação sexual consta como “orientação de gênero” (as linhas de cada caso estão, na maioria, vazias ou preenchidas com “não informado”) e parece ter sido acrescida à resposta por causa do pedido de LAI.
Para criarmos o índice que mede a transparência das polícias de cada unidade federativa brasileira, decidimos por um índice hipotético que vai de 0 (nenhuma transparência) a 1 (transparência total) — um método um pouco parecido com o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) da Organização das Nações Unidas (ONU). Em relação à avaliação da transparência, utilizamos o seguinte método: atribuímos pontos aos dados disponibilizados em si (características das vítimas, do crime, etc), e atribuímos pesos à qualidade com a qual esses dados são compartilhados (em transparência ativa, com acessibilidade, etc). Abaixo detalhamos melhor como os dados foram analisados:
Cada um dos 15 itens de dados observados sobre as características de um homicídio conta pontos:
Ao final, os pontos de cada estado são somados. Sobre essa pontuação, são calculados pesos que aumentam a nota cumulativamente, com base nas características de como os dados são publicados:
Esses pesos aplicados aos dados visam reconhecer boas práticas em termos de transparência de informações sobre as informações. Com isso, estados que trabalham melhor a informação tendem a ganhar mais destaque.
Para tornar os dados mais comparáveis, o resultado final foi normalizado estatisticamente numa escala que vai de zero, nos estados que não atendem a nenhum item de transparência, até 1— no caso hipotético de um que forneça todos os itens de informação e atenda a todas as características observadas de boas práticas de transparência.
Com isso, o estado melhor colocado, São Paulo, atingiu menos de 60% da pontuação máxima hipoteticamente possível na transparência ativa, indicando que ainda tem espaço para melhorar não apenas a informação fornecida como também a maneira como a fornece. E o Rio Grande do Sul, que em princípio oferece menos pontos de informação, passa de terceiro para segundo lugar por oferecer os dados usando melhores práticas.
A aplicação dos pesos também permite o “desempate” em casos como Pernambuco e Rio de Janeiro. Os dois Estados fornecem um número semelhante de itens de informação, mas Pernambuco fornece dados mais desagregados, acessíveis mais rapidamente e em menos cliques do que o Rio de Janeiro. Por isso, após a aplicação dos pesos, passou à frente.
O Estado tem o dever de prestar contas sobre quem morre e quem mata em nome da segurança pública
Índice de Transparência de Violência Policial criado pela Ponte avaliou a qualidade das informações disponibilizadas pelas secretarias de Segurança Pública das 27 unidades federativas do país.
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Separamos exemplos positivos de diferentes unidades federativas brasileiras para ilustrar como as polícias podem ser mais transparentes no Brasil.
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Por Marcelo Soares
Reportagem, redação e levantamento de dados: Jeniffer Mendonça
Consultoria: Marcelo Soares
Edição: Amauri Gonzo
Idealização: Fausto Salvadori
Projeto gráfico: Antonio Junião
Fotos: Daniel Arroyo
Este projeto foi realizado com recursos da Rights & Security International (RSI)
A partir das quantias acima, você faz a Ponte chegar mais longe